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Conto de Natal
Por Alda Chaves (Professora), em 2012/12/26935 leram | 0 comentários | 211 gostam
O verdadeiro espírito natalício
O verdadeiro espírito natalício

     Faltava uma semana para o Natal e eu ainda não estava preparada. Não havia dado conta da rápida aproximação desta data, que, entre música e montras decoradas como manda a ocasião, tinha chegado tão sorrateiramente próximo de nós, de tal forma que todos, exceto a mãe, divagávamos ainda um pouco quando questionados sobre pormenores da sua celebração.
     Eu não havia escolhido o meu presente, nem pensado tampouco no que responder quando a mãe perguntasse se queria algum doce especial para saborear naquela noite mágica. Ainda me encontrava em fase de transição, como se tentasse alargar as paredes do coração, para que tanta prosperidade tivesse lugar, sem andar aos encontrões com outros sentimentos dos quais não vale a pena agora falar, pois não vêm a propósito de tal data.
     Meditava eu sobre o assunto, enquanto bebia aquele que era o meu primeiro chocolate quente do ano, quando o toque do telefone me chamou à realidade, deixando a minha blusa sarapintada de pequenas, mas deliciosas, manchinhas castanhas de chocolate. Ligava a tia Ester, que, como todos os anos, desde que me lembro do mês de Natal, queria encontrar-se connosco, como “manda a tradição”, dizia ela, numa tentativa implacável de forçar tal visita. Ora, eu não sentia nada contra ela, nem mesmo depois dos beijos lambuzados de batom vermelho carmim, ou das tentativas frustradas em que insistia que eu, como rapariga, tinha era que arranjar um namorado, para ver se amadurecia e me tornava numa senhora. O problema mesmo era o que acarretava a sua visita. Joana e Paulo, os seus filhos, teriam que ficar a dormir no meu quarto durante três noites, enquanto eu dormia no desconfortável sofá da sala, pois, dizia o pai, temos que fazer os nossos hóspedes sentirem-se em casa e, de facto, casa que não tem cama não me parece nada convencional!
     Assim, e dado por finalizado o telefonema, em que baboseiras e palavras repletas de espírito natalício não faltaram, era tempo de arrumar o quarto e preparar as minhas delicadas costas para três noites de puro martírio. De braços hirtos, caminhei rumo ao quarto para começar a árdua mas inevitável tarefa, que seria seguida de um último sono numa verdadeira cama.
     Ah, eram oito e meia da manhã quando tocou a campainha. Os três, a mãe, o pai e eu, descemos as escadas, rápida mas sonolentamente, de olhos ainda pesados, tal era a vontade de termos ficado na cama aconchegados. Abrimos a porta e a lufada de ar fresco, seguida da voz estridente da tia Ester, que, alegremente, estendia os braços para cada um de nós, apagaram qualquer réstia de sono que pairasse sobre as nossas cabeças.
     Já acomodados, e depois de servido o almoço, a mãe sugeriu que eu, agora que já era grandinha, mostrasse a Joana e Paulo o enorme presépio que tinham montado no centro da cidade, pois “nada ilustra tão bem a simplicidade e generosidade com que deve ser vivida esta época”, palavras da mãe. Encontrava-me numa visível fase de contestação, pelo que não via, dentro de mim, um único pedacinho de vontade de lhes mostrar um sítio a que já fora tantas vezes quantas as possíveis. Preparava-me para ripostar, ciente de que a mãe não se agradaria de tal atitude, quando interveio o pai, dizendo que não ouvia, há anos, ideia de tal genialidade, deixando-me, deveras, numa posição ainda mais complicada e forçando-me a ir. A tia Ester respondeu dando-me um enorme beijo na testa e advertindo-nos para que seguíssemos o caminho mais seguro até ao centro.
     Deveria eu ter olhado a tal conselho, bem sei, e foi um pouco contra a vontade de Joana e Paulo que não o fiz, mas não estava com paciência alguma para ir pelo longo caminho que nos fora indicado, e decidi então tomar um atalho que nos levaria, por entre ruas desertas, apedrejadas e repletas de árvores sombrias, até ao centro da cidade de uma forma muito mais rápida.
     Seguíamos os três, acompanhados de um silêncio um pouco constrangedor, quando ouvimos um estranho ruído, que não sabia eu decifrar, mas sobre o qual não perguntaria aos dois irmãos. Depois de uma pequena hesitação, não orquestrada mas denotada nos passos de todos nós, retomamos, um pouco receosos, o caminho que levávamos. Eu ia na frente, indicando aquele que seria o caminho que nos levaria até ao centro da cidade. Dado o tempo de nos recompormos do pequeno susto, fez-se ouvir um outro ruído, que me pareceu agora assemelhar-se a um estranho misto entre pequenos gemidos e sons que ecoavam de algo metálico a bater com força. Não foi precisa qualquer palavra para que todos acelerássemos o passo, como se todos tivéssemos sentido um arrepio na espinha naquele momento, como se partilhássemos todos da opinião de que não era seguro por ali vaguear. Foi quando, e aí sim senti que me encontrava no típico filme de terror, o meu apuradíssimo sentido de oportunidade se fez notar, obrigando-me a tropeçar num ramo largo e extremamente imperfeito que se encontrava caído diante de mim. Numa tentativa de me recompor, e antes de me tentar erguer, sacudi a cabeça, passei as mãos uma pela outra e só depois levantei os olhos, procurando Joana e Paulo, procurando orientação. Ora, tudo teria corrido mais ou menos bem, não fosse eu deparar-me com a cara mais tenebrosa em que já pousei os olhos. A sua boca era larga e rasgada e, por cima de um afiado nariz, destacava-se um par de olhos, negros como o crude, que parecia capaz de consumir qualquer alma em segundos. Encontrava-me naquela parte do filme em que a vítima dá de caras com o vilão e, se bem me lembro, prosseguia-se aquilo a que gostava de chamar “o confronto”. Os dois irmãos mal se mexiam e, apesar de não os olhar, eu tinha a noção de que os três respirávamos em uníssono uma melodia de pânico e inquietação.
     O par de olhos agarrou, fazendo-se acompanhar de todo o resto do corpo, um dos meus braços, içando-me até cima e deixando-me completamente de pé. Os momentos que se seguiram foram, sem dúvidas, dos mais inquietantes que alguma vez vivi. Após se ter mostrado extremamente descontente com a nossa presença ali, percebi que este escondia algo, algo cujo desconhecimento não seria posto em causa por três miúdos sem importância. Lembro-me da sua voz rouca a ecoar nos meus ouvidos e lembro-me igualmente bem das caras apavoradas de Joana e Paulo, que lamentavam certamente ter-me acompanhado. Fomos guiados até uma espécie de casa abandonada que se encontrava a alguns metros do sítio onde estávamos e de onde se faziam ouvir o que eu percebia agora serem latidos sofridos que pediam clemência face a não sei bem o quê. Depois disto, não consigo recordar o sucedido, tendo só retido na memória a imagem de um espaço cruel que não sabia bem como identificar.
     Agora, sentada numa das cadeiras, dispostas em fila, na esquadra local, divagava sobre o que acontecera. Sentia que todo o meu corpo havia travado uma dura batalha contra si próprio, tal era a forma como me sentia dorida, e foi enquanto analisava mentalmente o meu corpo que um agente, daqueles baixos e barrigudos, que parecem sempre saber o que dizer, se dirigiu a mim. Somente agora me apercebia do que se havia realmente passado, e fui informada de que fora graças a nós três que fora desmontado um procurado grupo organizador de lutas caninas ilegais. Segundo o que me contavam, tínhamos conseguido comunicar à polícia as coordenadas do local, após termos conseguido apoderar-nos de um aparelho de comunicação e de termos, felizmente, arranjado maneira de orquestrar um plano para fugir dos malfeitores.
     No regresso a casa, feito no carro da polícia e acompanhada dos meus primos, passei frente ao enorme presépio do centro da cidade, o que me fez largar um sorriso genuíno quando olhei os rostos de Joana e Paulo. Esta aventura havia, sem dúvida, feito com que eu pensasse nos dois irmãos de outra forma, pois não só se tinham mostrado pessoas de coragem, como percebia eu agora o significado do presépio de que a mãe falava. De facto, esta aventura mostrara-me que é muito fácil perder tudo num curto espaço de tempo e que, portanto, devemos dar valor àquilo que mais importância tem, a família e aqueles de quem mais gostamos. Na verdade, surgia dentro de mim uma enorme dúvida- haveria eu, até agora, alguma vez sentido aquele que é o verdadeiro espírito natalício?

Pequeno Anjo – Cristina Beleza, 9.º C


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